eudarcantiga

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“gosto de olhar comprido, longo, longe. Gosto de ver o horizonte para além do mar e de olhar desde o topo da montanha, gosto de olhar para além do fundo do céu, da liberdade de sonhar para além da imaginação, para além do já sabido, do conhecido. Gosto de conhecer, mais que de reconhecer. Para além da lenda. Assim sou eu: para além da história, ou “para lá de antes que seja história.”

Saturday, December 22, 2007

Natal

E então era dezembro, como sempre era dezembro depois do trigésimo dia de novembro, que como sempre acontecera depois de outubro. É, era dezembro como no mínimo vinha sendo dezembro por alguns tantos quase dois mil anos - um tempo maior que a eternidade para quem não era muito mais que um projeto de gente de uns poucos anos, aos quais tão logo juntaria mais um. Sim, pois como o Jesus do berço de palha que depois crescera e se encarrapitada sobre a bandeira da porta da sala de visitas da casa da Vó Neném , também eu, menina pequenina, era de dezembro, como de dezembro era minha outra a Vó, a Betina, que era do dia seguinte. Que dia seguinte? Ora, do Natal, naturalmente.

...e se passou muito tempo até que eu me desse conta de que Natal era aniversário de Jesus...

Naquele tempo ninguém falava disso, nem tampouco o Natal começava ontem: Natal, quando eu era pequena, era dia 25, a manhã do dia 25. A gente adormecia ontem e, pela manhã, com sorte, encontrava um - quase nunca mais que um - pacote, cujo conteúdo às vezes aproximava-se do desejo.

E o desejo era muito particular: um segredo entre eu e o menino.

E não sei de onde partia a escolha do tal presente especial, recompensa por todo um ano de obediência e bons modos que haveria de chegar naquela tal manhã especial.

Assim era dezembro, a um só tempo mês de alegre expectativa de festa e de arrependimento pelas pequenas má-criações e maldades ainda menores porventura praticadas, que, para os adultos eventualmente pudessem por um momento ter sido motivo de alarde e censura - às vezes até uma palmada, um puxão de orelhas - não passavam de traquinagens sem consequência. Para mim, muito ao contrário, eram razão de profunda reflexão e recriminação.

Ah!... por que eu não deixara quieto o gato ao invés de lhe ter puxado o rabo quando dormia ronronando mansinho no canto da cozinha? por que sacudira o galho da mangueira para pegar a manga madura que eu não alcançava se eu sabia que o Vô Chiquinho não gostava porque fazia cair também as mangas verdes? e - grande pecado! - por que negara a Vó Neném a tampinha da laranja que ela descascara para mim?

AH!... quanto remorso sentia o meu coraçãozinho apertado no peito!... e quanto medo de não receber nenhum presente no Natal!

Pois é. Na realidade o remorso não era bem aquele do ter feito: o remorso era pelo efeito do ter feito.

E vinham as promessas solitárias para o ano seguinte. Promessas de não fazer e outras de remediar. O gato poderia dormir quieto quantas vezes quisesse, onde quisesse, por quanto tempo quisesse. Puxar-lhe o rabo? nunca mais! As mangas poderiam apodrecer no pé, eu é que não iria sacudir galho mais nada. E minha avó? Esta passaria a chupar todas as tampinhas de todas as laranjas - mesmo aquelas que eu mesma descascasse.

E sei lá se eu não rezava umas não sei quantas rezas truncadas, por que rezar não sabia direito. Às vezes até pensava rezar e pedir perdão de joelhos nos caroços de milho como eu havia visto a Santa Terezinha da peça do circo fazendo... mas voltava atrás porque achava que eu não era nem seria nunca santa mesmo.

Por tudo isso, e mais o fim do ano escolar - que nem era meu, mas da escola da minha mãe que era a ela muito dedicada - meu aniversário, que era a dezesseis, passava meio atropelado. Não entendia por que j- á que havia um tal Papai Noel responsável por trazer de algum lugar o tal presente especial e parecia que ninguém precisava pagar por ele - meus pais diziam que não podiam gastar muito com festas para mim porque já, já, seria Natal e tudo custava muito caro para o dinheiro pouco. Eu não entendia nada. Para mim gente grande era mesmo um pouco doida. Afinal, por que tinham que gastar dinheiro para me dar uma coisa que eu é que teria que pagar com “boa-mocisse” e bom comportamento?

Caro ficava era para mim que além de ter que barganhar com Jesus meus pecadilhos, ainda ficava meio sem festa de aniversário e meio sem presente.
Mas nada disso importava: eu adorava ser de dezembro. Só não gostava que fosse tão quente. Mas isso é coisa que nunca entendi porque.

Não me lembro de presépios nem de árvores de Natal nas casas que eu freqüentava na minha infância. Lembro sim o enorme presépio armado na Catedral de São João Baptista, onde tudo se mexia. Acho que até o Menino Jesus mexia as perninhas enquanto a vaquinha balançava a cabeça. Tinha tudo no Presépio. Um bando de bonequinhos: uns, muito bem vestidos em seda e dourado que seriam os Reis Magos, uns outros vestidos com simplicidade diziam-me ser os pastores - o que não me incomodava, pois eu não estava nem aí para as tais ditas diferenças sociais. Eu gostava mais era de ficar olhando a mulher fiar a roca, o carpinteiro bater o martelo, o moinho ser tocado pela água do riachinho que nunca parava de correr.

E havia que preparar as comidas especiais. Na casa do Vô Chiquinho, português, não podiam faltar castanhas, rabanadas ao vinho, rabanadas ao leite ( que a minha avó nunca me deixava de dar uma assim que pronta pois sempre gostei delas quentinhas, com bastante açúcar e canela) e o bacalhau de primeira, do Porto como convinha, regado ao melhor azeite da Terra, e ao bom vinho tinto da mesma procedência.

Isso tudo aí em cima era para o almoço de 25, pois que, como já disse, no meu tempo de menina nem se falava em ceia de 24. Muito menos de presentes de véspera. Na véspera, ouvia dizer, algumas pessoas iam a uma tal Missa do Galo, que eu em minha santa ignorância infantil, matutava: o que poderia fazer um galo dentro de uma igreja, durante uma missa, mais do que cacarejar atrapalhando o padre ou soltar porcarias pela nave.
...................
Tinha quatro anos quando conheci Catarina, tamanha contadora de histórias! Russa de nascimento, loura de grandes olhos azuis, me apresentou natais que eu não conhecia: natais brancos, de intenso frio fora das casas, de lareiras - ou grandes fogões de lenha - que não se apagavam e de grandes reuniões de família à volta do fogo, de grandes caldeirões de sopa p'ra tomar enquanto se entoavam cânticos e se via cair a neve...
... ouvindo a voz de suave sotaque de Catarina, eu sonhava um dia poder ter um natal assim.

Catarina também me ensinou que nem todo natal de neve é assim tão lindo... e me fez chorar com a Menina dos Fósforos que nem nome tinha.

Mas Catarina não me falou de árvores de natal. Estas conheci quando comecei eu mesma a ler minhas histórias e vê-las nas gravuras coloridas dos livros que ganhei. E também achei lindos os pinheiros enfeitados de bolas, laços e biscoitos de gengibre recortados em forma de estrelas, bengalas, anjos, todos salpicados de açúcar cristal.
E, de repente, havia o rádio que colocou fundo musical no meu Natal. De algumas canções entendia as palavras, mas outras eram cantadas por um cara de voz retumbantemente sonora que dizia coisas que meus ouvidos não conheciam mas meu coração era capaz de entender. Das que entendia desde os ouvidos, uma falava de pessoas que, ou não precisavam mais ganhar nada por que já tinham tudo, ou então não tinham nada, pois que até felicidade tinham que pedir a Papai Noel...

...Papai Noel, vê se você tem
a felicidade p'ra poder me dar...

E duvidava que todo mundo fosse filho de Papai Noel...
(acho que essa quem cantava era o Carlos Galhardo)

Ainda bem que eu era filha do meu pai e não precisava do Papai Noel para ter felicidade. E tinha minha mãe que dava uma forcinha para que não se incomodasse o bonachão de vermelho para aquele tal presente especial.

Mas isso foi outra coisa que só descobri depois.

Pequena, eu pensava mesmo é que às vezes o velhinho de barbas brancas estava era meio caduco quando eu combinava lá com o Jesus Cristinho não fazer mais nenhuma bobagem, pedia uma boneca e acordava abraçada a caderno de desenho e caixa de lápis de cor.

E fui crescendo com os natais da minha vida, aprendendo um pouco em cada um e com cada um - e crescer às vezes significa perder um pouco de ilusão e fantasia. Não sei se foi assim comigo, pelo menos com as coisas e as histórias do Natal. As ilusões perdidas foram outras, e nem cabem aqui. Minha "sabedoria adulta" está informada que, nestes meus tempos, o Papai Noel que freqüenta portas de lojas e montagens natalinas de grandes shoppings - que nem sequer existiam na minha meninice - tem barbas e barriga falsas, faz parte de um complexo programa de mídia para vender mais e cada vez mais e não passa de alguém recebendo um salário para cumprir um papel.

Mas não importa. O que importa é que ainda encanta a garotada.

Sábias crianças de emoções legítimas. Comércio? Jesus vendido embrulhado em papel de presente, vilipendiado pela mídia, Papai Noel de fancaria? Coisas de adulto contaminado pelo "politicamente correto". Criança não toma conhecimento disso. Criança é coisa pura e conversa com os anjos. E essa linguagem é outra. Não precisa de palavras porque é linha direta de coração para coração que adulto quase perde a capacidade de entender. E só não perde porque a criança em todos nós é mais forte que tudo e sobrevive quietinha, quase adormecida dentro de cada coração às vezes durante todo o ano. Mas não resiste ao apelo de dezembro, aos sinos, às bolas coloridas, aos anjinhos tocando trombeta, às estrelas de Belém sempre com cara de cometa dependuradas em céus azuis de confecção nem sempre muito crível.

E não importa se há neve ou não, se o Natal é Branco ou não, se faz 40 graus acima ou abaixo de zero, se os presentes são muitos ou nenhum, porque o Jesus do Natal também é criança. O Jesus do Natal é sempre menino pequenino mesmo que não balance as perninhas na manjedoura do estábulo. Também ele, como o Papai Noel do shopping,no presépio armado, é só um bonequinho de um material qualquer. E assim, também ele seria de mentirinha. Mas não é. E não é porque a nossa criança está ali e acorda e sintoniza os anjos e com eles comunga o prazer de festejar o aniversário do Menino-Deus.

(Ilnéa País de Miranda - n’algum Natal por ai)

Nota - Esta é uma das histórias de "Eu Menina Toda Prosa... e Alguma Poesia", Verano Editora/Ipiranga, 2a.Ed, 1999- Brasília, DF