eudarcantiga

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Location: Niterói, RJ, Brazil

“gosto de olhar comprido, longo, longe. Gosto de ver o horizonte para além do mar e de olhar desde o topo da montanha, gosto de olhar para além do fundo do céu, da liberdade de sonhar para além da imaginação, para além do já sabido, do conhecido. Gosto de conhecer, mais que de reconhecer. Para além da lenda. Assim sou eu: para além da história, ou “para lá de antes que seja história.”

Tuesday, July 18, 2006

Relembranças

Travessias

Quando eu era pequena todas as histórias começavam com "era uma vez..."
E então, era uma vez.

Era uma vez uma menina pequena que uma vez por mês atravessava a Baia de Guanabara a bordo da Barca da Cantareira.

Até ali já uma viagem. De bonde. Ou de ônibus, às vezes. E, muito mais às vezes ainda, de carona no taxi do marido da Elza. No coração um desejo... ou muitos. Na bolsinha de crochet a tiracolo, biscoitos para enganar a fome.

Era sempre no dia seguinte do pagamento da minha mãe-professora. Ontem tinha sido dia de passar na Coletoria para pegar o dinheiro que era dinheiro mesmo, sem nada destas coisas de contracheque, pois que naquele tempo nem de cheque se ouvia falar, e bancos guardavam apenas dinheiro dos muito ricos. Aí que "seu" Sei-lá-quem, digníssimo coletor estadual, quase sempre um senhor de óculos com cara de poucos amigos, entregava o pagamento dentro de um envelope, pequeno, como penso sempre foi o salário dos professores. Mas minha mãe recebia, orgulhosa, e agradecia ao tal lá que grunhia qualquer coisa olhando por cima dos óculos.

Pensando melhor, o pouco naquela época, talvez nem fosse assim tão pouco, já que, no dia seguinte, minha mãe se arrumava toda, vestia em mim meu melhor vestido, e ia gastar um pouco ( ou muito ) do pouco em alguns prazeres que se dava todos os meses. Fico pensando se eu fazia parte desse prazer ou participaria dele só por que a "braba" Vó Neném se recusava ficar comigo para prazeres: tomar conta de netos só nas necessidades - consultas médicas, trabalho, coisas afins.

E assim, por esta razão ou por outras que me escapam talvez por que nunca me tivessem preocupado, lá ia eu pimpando para o Rio de Janeiro, navegando a onda de prazer de minha mãe.

Bolsinha a tiracolo, vestido rodado e laçarote no cabelo, eu segurava firme a mão de minha mãe e me perdia na floresta de pernas à minha volta enquanto aguardava a barca - enorme, meu Jesus, enorme! - atracar. E ai, outra aventura: pular o vão entre o atracadouro e a proa - popa da dita barca que, manobrada por dito mestre ou contramestre, jamais encostava direito, deixando sempre um vão muito, muito mais largo que o passo das minhas pernas...

...e então minha mãe me fazia voar por sobre o abismo. Eu e a minha bolsinha de biscoitos.